A tarifa social de água e esgotamento sanitário não é um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, ela ganhou contornos normativos mais claros com a publicação da Lei nº 14.898, em 13 de junho de 2024, que consolidou diretrizes nacionais para sua implementação, ampliando o alcance do benefício e reforçando a lógica de proteção às famílias de baixa renda.
Durante anos, embora prevista no marco legal do saneamento, a tarifa social enfrentou dificuldades práticas de implementação. A ausência de critérios uniformes, a fragmentação regulatória e a indefinição sobre os mecanismos de compensação econômica fizeram com que o instituto permanecesse, em muitos casos, mais no plano normativo do que na execução concreta dos contratos.
Esse cenário começou a se alterar com a atuação regulatória mais recente. Em novembro de 2025, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) aprovou norma de referência (Norma de Referência ANA nº 13/2025, aprovada pela Resolução ANA nº 271/2025) voltada à estrutura tarifária e à operacionalização da tarifa social, oferecendo diretrizes para titulares, entidades reguladoras e prestadores de serviço. Trata-se de um passo relevante para dar concretude a um instituto legal que, até então, carecia de maior coordenação nacional.
A iniciativa é legítima e socialmente necessária. No entanto, como ocorre com toda política pública implementada no âmbito de contratos de concessão e parcerias público-privadas, a tarifa social não é neutra do ponto de vista contratual.
Ao alterar premissas consideradas na modelagem econômico-financeira — seja pela redução de receitas tarifárias, seja pela ampliação do universo de usuários beneficiários — a implementação da tarifa social pode impactar diretamente o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, exigindo análise técnica cuidadosa, coordenação regulatória e a utilização dos instrumentos de recomposição previstos contratualmente, quando cabíveis.
Esse ponto merece atenção.
A sustentabilidade econômico-financeira dos contratos é condição indispensável para que as metas de universalização do saneamento sejam efetivamente alcançadas. Incluir não pode significar inviabilizar.
É nesse contexto que a gestão contratual assume papel central. As diretrizes recentemente editadas pela ANA deixam claro que a tarifa social demanda:
• avaliação do impacto econômico-financeiro ao longo de todo o ciclo contratual;
• definição clara sobre a alocação dos ônus da política pública (titular, subsídios cruzados, fundos públicos ou mecanismos tarifários);
• atuação consistente das entidades reguladoras infranacionais;
• e, quando necessário, mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro.
A experiência prática indica que muitas das controvérsias que tendem a surgir no setor de saneamento não decorrerão de inadimplementos clássicos, mas de mudanças legítimas de política pública introduzidas após a contratação, cuja absorção exige respostas jurídicas técnicas, preventivas e institucionalmente maduras.
Nesse cenário, é essencial compreender as nuances regulatórias, a estrutura de custos do serviço, os indicadores operacionais, os incentivos econômicos e o papel do regulador, para que público e privado entendam as melhores soluções possíveis ao longo da execução contratual.
Mais do que litígios, o que se projeta no horizonte são processos de recomposição, renegociação e adaptação contratual, que exigem boa-fé, governança e capacidade técnica.
A tarifa social é, assim, um exemplo emblemático de como políticas públicas bem-intencionadas precisam caminhar lado a lado com gestão contratual eficiente, sob pena de gerar insegurança jurídica, judicialização excessiva e frustração dos objetivos setoriais.
O desafio do saneamento no Brasil não é escolher entre inclusão social e sustentabilidade contratual.
O verdadeiro desafio é fazer com que ambas coexistam, por meio de contratos bem geridos, regulação consistente e atuação técnica e preventiva de todos os atores envolvidos.
Por Ane Elisa Perez.
Dra. Ane Perez
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