O Tribunal de Contas da União (TCU) autorizou, no dia 9 de dezembro, com ressalvas, a concessão pelo Ministério da Infraestrutura dos projetos da BR 153/080/414/GO/TO e da BR-163/230/MT/PA. A BR-153 liga Anápolis (GO) a Aliança do Tocantins (TO), nas quais está previsto o investimento de R$ 7,8 bilhões, e, por sua vez, a BR-163 liga Sinop (MI) aos portos de Miritituba, no município de Itaituba (PA), rodovia considerada o principal corredor logístico do eixo norte do país.
A decisão do TCU (processos Nº 016.936/2020-5 e 018.901/2020-4) restringiu, porém, o uso de dispute boards — mecanismos alternativos, privados e administrativos nos casos dos contratos públicos, de solução de conflitos, que têm por objetivo auxiliar as partes a gerir os contratos, prevenir litígios intermináveis e dar efetividade à execução dos ajustes — para a solução de eventuais conflitos que surjam no decorrer do contrato, antes que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) regulamentasse a utilização desse mecanismo em contratos celebrados no âmbito da agência.
Os conselheiros entenderam que o mecanismo do dispute board não constaria em lei e não seria regulamentado pela ANTT, o que obstaria o seu uso nas concessões acima mencionadas, já que a lacuna normativa decorrente da ausência de regulamentação poderia causar questionamentos judiciais ou arbitrais por parte da concessionária, o que poderia macular toda a execução contratual. Contudo, ressalta-se que, embora tenham entendido pela não utilização dos dispute boards, os conselheiros permitiram o uso, no âmbito dessas mesmas contratações, de outros mecanismos extrajudiciais, como a arbitragem e a mediação, por exemplo, sob a justificativa de que ambos os mecanismos são regulamentados por leis específicas (Lei 9.307/1996, alterada pela Lei 13.129/2015, Lei 13.140/2015, respectivamente, e Resolução ANTT 5.845/2019).
Também questionaram se o instrumento de resolução de conflitos possui a agilidade necessária, uma vez que o comitê seria instituído de forma ad hoc, ou seja, somente quando houvesse um conflito — situação concreta excepcional e complexa — é que seriam recrutados os membros do referido comitê. Acreditam, assim, que tal mecanismo poderia vir a atrasar a solução do conflito. Desse modo, foi estabelecido pelo TCU que somente será aceito o dispute board após regulamentação adequada.
Entretanto, a decisão tomada pelo TCU é um retrocesso, conforme apontado pelo próprio ministro Benjamin Zymler, que ponderou que, mesmo que não exista previsão em lei até o momento quanto ao formato exato do dispute board, este segue a mesma lógica de outros mecanismos de resolução de conflitos já utilizados e regulamentados. Ademais, a ANTT somente utilizaria o mecanismo depois de estar devidamente regulamentado seu uso pela própria agência.
Como se não bastasse isso, a decisão ainda invade a competência da ANTT em decidir, conforme sua discricionariedade, sobre mecanismos de solução de controvérsias nos contratos por ela firmados.
Quanto ao mérito, mais uma vez, patente o desacerto da decisão dada pelo tribunal, especialmente porque há previsão legal para o dispute board, conforme o artigo 23-A da Lei Federal 8.987/1995 e o artigo 190 do Código Civil Brasileiro, o que permite inclusive o uso desse mecanismo em inúmeros outros casos, públicos e privados, como, por exemplo, a implantação da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Acórdão 1.947/2020-TCU-Plenário).
Além disso, a Nova Lei de Licitações, aprovada pelo Plenário do Senado Federal em 10 de dezembro e que pende apenas de sanção pelo presidente da República, mostrou-se completa e expressamente favorável à utilização do comitê de resolução de disputas — ou dispute board —, ratificando, portanto, o cenário de todo modo positivo para o uso do instituto pela Administração Pública brasileira nos mais diversos tipos de contratos.
Se não bastasse o cenário nacional favorável ao uso dos dispute boards nos contratos públicos, o cenário internacional há tempos já proclamou não só a possibilidade de sua utilização, mas também a obrigatoriedade da instituição do comitê em contratos financiados por alguns dos organismos internacionais de fomento, a exemplo do Banco Mundial, o qual exige a adoção de dispute board em contratos por ele financiados em valores superiores a 50 milhões de dólares.
Desse modo, é certo que a decisão do TCU é um retrocesso. Enquanto o mundo caminha no sentido do uso de mecanismos eficazes de gerenciamento dos contratos, especialmente os de infraestrutura de execução com complexidade elevada, a exemplo dos contratos de construção e reformas de estádios para a Copa do Mundo de 2014 e do contrato de construção da Linha 4 do Metrô de São Paulo, aqui caminhamos para a eterna cultura da judicialização que dia após dia demonstra que não é o litígio o meio hábil de se dar efetividade aos projetos de infraestrutura no país. Enquanto os órgãos de controle não acompanharem a evolução dos mecanismos efetivos de se garantir exequibilidade aos ajustes públicos, e se prenderem apenas aos seus formalismos, não haverá avanço na consecução dos projetos de infraestrutura no país — estes ficarão eternamente relegados às concepções ilusionistas ultrapassadas do que se pode entender por interesse público.
Dra. Ane Perez
Conteúdo Relacionado
Malha rodoviária segue em risco estrutural
Conteúdo originalmente publicado pela Revista M&T Como principal modal de…
Gestão eficiente de contratos de obras públicas
Assim como as demais áreas de conhecimento, o direito também evolui para…
Novo Marco Legal do Transporte Público Coletivo
Com o objetivo de aprimorar a Política Nacional de Mobilidade Urbana, desde…